Os funcionários não querem voltar ao normal
O velho normal deixou de fazer sentido no mundo do trabalho. As transformações rápidas que vivenciamos desde o início do isolamento social deram mais poder de escolha aos profissionais. Em seu novo artigo para o Valor Econômico, Rafael Souto, CEO da Produtive, mostra como as empresas precisarão pensar em um equilíbrio entre interesse organizacional e desenhos de vidas dos colaboradores.
A vacinação para diminuir os riscos à saúde do Covid-19 avança e, com o controle da pandemia, muitas empresas começaram a comunicar os modelos de trabalho que pretendem adotar e o cronograma de retorno de seus funcionários aos escritórios.
Há poucos meses, o presidente da Apple, Tim Cook, fez um emblemático comunicado para este reingresso e a rejeição de boa parte dos funcionários da empresa é um alerta estrondoso do momento que estamos começando a passar no Brasil. A carta convoca os funcionários da Apple para retornarem ao escritório no mês de setembro e Cook deixa claro sua alegria e a expectativa entusiasmada de ver as pessoas trabalhando juntas novamente na empresa, além de ressaltar os ganhos para a cultura e a construção coletiva.
O resultado foi uma enxurrada de reclamações e ameaças de pedidos de demissão. Os funcionários da icônica empresa americana não fazem parte de um grupo isolado de rebeldes. Pelo contrário: todas as pesquisas que temos acompanhado apontam para um massivo interesse da permanência no “home office” como modelo principal de trabalho.
Um exemplo disso é um estudo recente da consultoria Pew Research Center que mostrou o percentual de 55% das pessoas que não querem retornar à rotina presencial nos escritórios. Esse montante compreende a importância de algumas atividades presenciais e de atividades em grupo, mas gostaria que fosse um modelo de exceção, e não um formato obrigatório.
Outra pesquisa conduzida pela companhia JLL com dois mil profissionais mostrou que 66% querem ter liberdade para escolherem o modelo que melhor combinar com seu estilo de vida. Querem autonomia para organizar a agenda, sendo a presença no escritório algo eventual.
Na mesma direção temos um estudo da Fundação Dom Cabral com profissionais brasileiros: 75% deles querem trabalhar em home office, com a opção de escolherem frequência de dias de trabalho presencial, conforme a necessidade, sem modelos rígidos.
Por aqui, em terras brasileiras, temos a vantagem de antecipar as consequências desse fenômeno, que vem ganhando força na Europa e nos Estados Unidos, para nos ajudar a pensar em estratégias para lidar com o inevitável. O mundo do trabalho não retornará aos modelos “tradicionais” em que vivíamos até fevereiro de 2020. Isso porque não existe retorno ao normal, uma vez que ele foi extinto.
As pessoas descobriram outras formas de construir seu desenho de vida e não querem mais abrir mão dele. Nas áreas em que a oferta de trabalho supera o número de pessoas qualificadas será impossível impor um modelo de retorno ao sistema antigo.
Já estamos vivendo um momento em que as ofertas de trabalho que contemplam o WFA (Working from Anywhere – Trabalhar de qualquer lugar) têm vantagem significativa sobre posições que determinam um local fixo de trabalho. Esse já é um diferencial para atrair pessoas.
E vejam este alerta: outro estudo recente mostrou que 39% das pessoas estavam dispostas a pedir demissão se o modelo de trabalho não for flexível. Ou seja, vão procurar por empregos que ofertem uma possibilidade de conciliar seu modelo de vida com o trabalho.
O efeito do WFA é que as pessoas não estão mais restritas às empresas próximas à região de moradia e podem trabalhar para qualquer empresa, independente da localização dos escritórios. Isso transforma a lógica de contratações e a guerra por talentos.
Estamos diante de um marcador histórico das relações de trabalho. O ano de 2020 representa uma divisão irreversível em que o poder da imposição não funcionará mais.
Diante disso é que os novos modelos terão de ser flexíveis e discutidos. As regras precisarão equilibrar interesse organizacional e desenhos das vidas dos colaboradores.
Por essa razão é que discursos rígidos não são mais aceitáveis, como o que foi feito pelo presidente da Morgan Stanley, James Gormann, que afirmou que teria conversas “num tom diferente” com os funcionários que não retornassem ao trabalho nos escritórios. A ameaça, o modelo de comando e controle estão com os dias contados. Líderes com esse perfil assistirão uma avalanche de talentos darem adeus e ficarão acompanhando seus negócios envelhecerem com uma saudade melancólica de um mundo que já não existe mais.