A destruição de Cartago e o mundo corporativo
O que as Guerras Púnicas têm a ver com a realidade corporativa de hoje? É essa reflexão que Rafael Souto, CEO da Produtive, traz em seu novo artigo para o Valor Econômico.
A frase em latim “Carthago Delenda est” significa “considero ainda que Cartago deve ser destruída”. Uma afirmação clássica da oratória latina que surgiu no século II a.C quando Roma enfrentou Cartago nas dramáticas batalhas que ficaram conhecidas como Guerras Púnicas. Simboliza que o inimigo deve ser aniquilado. Destruído sem chance de recuperação.
Os cartagineses ficaram conhecidos por sua rápida capacidade de reorganização das linhas de defesa. O senador romano Catão, o Velho, (234-149. a.C), ficou famoso por utilizar essa expressão no final de seus discursos. Destruir Cartago significava eliminar uma ameaça importante de domínio sobre o mar mediterrâneo. Catão rejeitava qualquer possibilidade de acordo de paz. Por isso, Cartago deveria ser eliminada.
No século XXI, dois mil anos depois, Catão parece influenciar muitos executivos no nosso turbulento mercado de trabalho, como se permanecesse na figura de coach contemporâneo de vários CEOs que chegam ao poder.
Eliminar outros profissionais que pensam diferente ou representam ameaça ao projeto é uma das estratégias preferidas de quem está no topo. É quase consenso no mercado que um executivo, quando assume o poder, fará mudanças para garantir a entrega de seu projeto. Parte dessa “higienização” é uma estratégia ao estilo romano de aniquilação de opositores e de questionamento de poder.
A instabilidade dos cargos amplia esse temor e torna o C-Level o centro nervoso da empresa. O topo da organização sofre pressão constante dos conselhos de administração ávidos por resultados de curto prazo. Os riscos de demissão são cada vez mais altos. Qualquer ameaça interna deve ser eliminada. Boa parte do tempo na gestão é consumida em organizar estratégias de ataque e sobrevivência. Isso torna o ambiente uma panela de pressão.
Sydney Finkelstein, professor da Tuck School of Business da Dartmouth College, nos Estados Unidos, publicou um estudo sobre os comportamentos mais devastadores dos executivos e destacou o que chamou de “hábito de eliminar qualquer um que não pense como ele”. Segundo o estudioso, o CEO que pensa que seu trabalho é incutir a crença na sua visão também acha que é seu trabalho fazer com que todos acreditem nela. Gerentes indecisos têm apenas uma opção: comprar o plano ou deixá-lo.
Essa estratégia de imposição deixa a organização pobre e sem capacidade de ser crítica de si mesma. E os riscos de insucesso aumentam muito, afirma Finkelstein.
Na vida corporativa, os conceitos de diversidade ainda são embrionários. Pensar diferente pode fazer parte da retórica politicamente correta nas empresas, mas, na prática, sobrevivem aqueles que dançam a música do topo. Destoar pode representar sério risco de demissão.
Nossa espécie prefere a hegemonia e a dominação. Fizemos isso no planeta. Conviver com diferenças não é uma característica muito desenvolvida no homo sapiens. Os sapiens corporativos são a expressão mais refinada da arte de manipular e dominar.
Umas das estratégias preferidas para imposição é o uso de jargões e expressões quase poéticas. E algumas até mesclam português e inglês com ar de modernidade. Por exemplo: alinhamento de cultura e valores, que, na verdade, significa seguir a cartilha apresentada. Outras são mais high-tech, como “fit” ou “match” cultural. “Faça o que estamos mandando” é o que todas querem dizer. São baboseiras que tentam dar um contorno simpático para a extrema dificuldade que temos de lidar com os diferentes.
Se você estiver numa empresa com um CEO paranoico, com estrutura de reportes matriciais e com um conselho de administração mais agressivo, prepare-se para uma faxina brutal. Os reportes não diretos deixam os chefes mais inseguros e de cabelo em pé. O receio de serem expostos ou terem seu controle ameaçado acentua o drama de quem está nas cadeiras mais altas.
Nesse momento tenha certeza de que a empresa já está dividida entre Roma e Cartago, sabendo que todos os caminhos levarão para Roma. Deixe a inovação e o pensamento disruptivo para seus momentos de lazer. Ser ousado e pensar diferente é parte da construção dos romances empresariais. Escolha o lado do poder ou estará no grupo dos cartagineses ouvindo o fatal grito de guerra “Carthago Delenda est”.